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Cabeça erguida

Olhando por cima da melancolia envergonhada feita de medos e superstições e proibições e castigos e fogueiras e ignorância, a genialidade humana soube enxergar em seu passado a centelha de uma cultura sábia mas que não nega a vida.  

Uma cultura sem vergonha, sem pecado, sem medo : com respeito, com inteligência, com a cabeça erguida e a mente afiada.

Pois quando descemos das árvores, com o corpo ainda coberto de pelos, e tivemos que erguer o olhar para encontrar alimento e enxergar ameaças, fomos obrigados a esticar a coluna – o que fez de nós esse animal ereto e falante, dono de um cérebro oxigenado pela nova postura.

É isso a vontade de potência da qual fala Nietzsche : essa tendência irreversível rumo à vida, à continuação da vida, ao jorro da vida – o chimpanzé que nós fomos continha o humano em que nos transformamos, evolução imperiosa da espécie.

Não há um antes e um depois, há um ciclo contínuo que se alimenta de si mesmo, de suas potencialidades, do que brota de dentro de si mesmo, força imanente que dispensa qualquer ato de criação, pulsão que arranca do ventre o futuro.

Somos imperfeitos e imperfeitos seremos sempre, por definição – porque tendemos ao mais, ao melhor, ao ultrapassamento de nós mesmos, ao supra-humano : jamais seremos Deuses. (sobre o ultrapassamento, em Nietzsche, veja Supra-humano, no Desmistificando).

E só a consciência da finitude, da morte, da imperfeição, da precariedade da condição humana que nos faz avançar. O resto é conformismo, é obediência, é pequenez – essa consciência é para poucos, para raros (já dizia Hermann Hesse em seu Lobo da estepe).

No que Hegel chamou de dialética do senhor e do escravo, debatem-se em nós o lobo e o homem : mas antes essa luta interna incessante, do que ser escravo de alguém fora de nós. Chega de se ajoelhar diante de ídolos e lendas entristecidas e ameaçadoras, chega de andar vergado e olhando para baixo.

Líder é aquele que se destaca : muitos acham que é pelo que temos, mas prefiro pensar que é pelo que somos

Olhar para a Antiguidade, nossa fonte primeira, não significa negar o que veio depois, só afirmar o que estava lá antes.

Nosso passado comum é um passado de conquista, de bravura, de força e de encantamento, não de submissão e medo. De vergonha, de pecado.

Deixar-se embalar pelas cores brilhantes e beleza resplandecente de seres e Deuses fascinantes e ricos não significa negar o espírito, a interioridade – pelo contrário : não aceitar o reducionismo de uma única divindade é abrir a mente e o coração para a diversidade de forças representadas por nossos antepassados e recorrer a elas para viver melhor, como indivíduos e como coletividade.

Afinal, muito antes de nós, homens de carne e osso viveram as mesmas situações em família, na política, no amor, na guerra, de religião, de justiça. Tudo isso é arquetípico, temos todo um banco de dados à nossa disposição. Esse banco de dados que faz que há 30 séculos tenhamos um mesmo modelo de herói, de justiça, de relações, de sociedade, de cidade, de política, de ciência.

Essa herança foi sendo passada até nós de mão em mão, entre conquistas, lutas e ensinamentos. E ela é rica, ela é única e sobretudo ela é nossa. A isso chama-se identidade.

Nota : Essa expressão “passada de mão em mão” não é minha, mas de Vinícius de Moraes, em seu “Para uma menina com uma flor“. Eu cito.

[…]  todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinalda s; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações – porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.”

Somos mais do que uma civilização judaico-cristã, pois essa classificação reducionista faz o fio condutor disso que se está chamando de civilização ser religioso e não cultural. E uma civilização não se define (só) por sua religião.

O que se está chamando de “cristã” é na verdade “ocidental”. Nós ocidentais temos uma herança que nos define como tais e que define nossa identidade – somos ocidentais. Algo muito além de uma religião. Somos filhos do alfabeto, da democracia e dos Direitos Humanos. Esses três pontos conjugados e concomitantes é que nos fazem ocidentais. Isso não nos torna melhores do que nenhuma outra civilização. Mas também não nos faz piores.

Por isso, cabeça erguida ! Com orgulho de ser mais do que uma religião, um credo, um deus. Mas com humildade para assumir que somos efêmeros e passageiros, poeira de estrelas, átomos reciclados. E que por isso temos tanto a aprender. Como indivíduos e como civilização. 

Marly N Peres

Veja Supra-humano, em outro Desmistificando