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Chez soi

Nietzsche (sim, sempre) nos diz :
“A vida consiste em raros momentos da mais alta significação e de
incontáveis intervalos, em que, quando muito, as sombras de tais
momentos nos rondam. O amor, a primavera, toda bela melodia, a Lua, as
montanhas, o mar – apenas uma vez tudo fala plenamente ao coração.
Mas muitos homens não têm, de modo algum, esses momentos, e são eles
próprios intervalos e pausas na sinfonia da vida real.”

Cada um de nós tem o seu chez soi, aquele lugar onde se sente em casa.
Do qual, quando estamos longe, é como estar no exílio. É se sentir
incompleto, deslocado, atopós.

Aquele lugar que faz que todo o tempo que não estamos lá sejam simples
“intervalos, pausas na sinfonia da vida real”.

Nesses intervalos, de repente passa em minha mente a imagem de uma
rua, de uma calçada, de uma sequência, de umas árvores farfalhando, de
uma fachada banhada de luz, de um feixe de sol manso, de um fim de
tarde em que o céu fica azul profundo – de um tom que só tem lá.


Porque o meu chez moi é lá, olhando sem cansar jamais o céu de nuvens
bem desenhadas, ressaltando o fundo que se revela aqui e ali. Porque o
meu chez moi é lá, onde eu ando a pé sem me sobressaltar com o barulho
infernal de ônibus e carros e motos.

Porque o meu chez moi é lá, onde faz frio ou menos frio em épocas
marcadas, sem confusão nem surpresas fora de hora.
Porque o meu chez moi é lá, onde se pode passar o dia inteiro em certos
pontos da cidade sem enjoar jamais, admirando pela enésima vez uma
praça ou um pedaço da margem do rio e esperando o fim de tarde para

ver aquela luminosidade única, lampadário recortado contra o céu que
mais parece uma pintura.
Porque o meu chez moi é lá, onde tem turistas demais, porque todo
mundo e o mundo todo quer estar lá.
Porque o meu chez moi é lá, onde existem regras de polidez, um luxo que
ajuda a fixar aquela confortável distância que permite saber exatamente
qual o seu lugar e o lugar do outro.

Porque o meu chez moi é lá, porque o meu chez moi é lá e eu morri de
medo que a pandemia não me deixasse voltar. Longe, o coração aperta, dói no
peito e a falta que meu chez moi me faz sobe líquida e começa a
transbordar, no meio do dia, no meio de uma frase, perfurando
pensamentos, atropelando meu cotidiano.

O que me salva é a filô, que nos dá “raros momentos da mais alta
significação”, salvando do exílio, da falta sufocante que se pode sentir de
si mesmo, saudade de si mesmo no chez soi.
É Nietzsche que desmistifica e transporta como ninguém, depois de
Epicuro e Diógenes, o conceito para o meio da rua, para o meio do dia,
para a “sinfonia da vida real”.

Marly Peres