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Re-conhecimento

Se você viu a publicação onde falo das Musas, já sabe que elas são filhas de Mnemosyne, a Memória.

Elas são ligadas a uma forma de expressão, qualquer que seja : a poesia épica, a história, a poesia lírica, a música, a tragédia, a retórica, a dança, a comédia, a astronomia. Ou seja, a Memória é a mãe daquelas que dão aos humanos as faculdades expressivas e discursivas.

A metáfora dessa filiação também nos diz que sem ela não conseguimos nem cultivar o belo nem reconhecê-lo.

Um mito conta que Lethe é uma ninfa das águas doces, filha de Éris, a Discórdia. Ela personifica o esquecimento e sua consequência, a ingratidão. Dá nome a um dos rios do Hades, as profundezas para onde vão os mortos. Eles mergulham em suas águas para esquecer a vida terrena e se livrar de todas as recordações, que não são apagadas, só ficam ocultas. Por isso podem ser re-conhecidas.

Porque depois de muitos séculos ali, algumas almas podem eventualmente integrar um novo corpo. Mas certas recordações permanecem e acompanham aquela pessoa durante a vida.

A ideia por trás do mito é que só se conhece o que se re-conhece.

Vem daí também o conceito de verdade como aquilo que é descoberto, desocultado, arrancado do esquecimento : aletheia.

Proust, em seu famoso Em busca do tempo perdido, nos diz : “Para mim é completamente razoável a crença celta de que as almas daqueles que perdemos estão cativas dentro de alguma coisa inferior, em um animal, um vegetal, algo inanimado, perdidas para nós, na verdade, até o dia que, para muitos nunca chega, em que nos acontece, ao passar perto de uma árvore, [por exemplo] de entrar em possessão do objeto que é sua prisão. E então elas tremulam, chamam por nós, e assim que as reconhecemos, o encantamento se quebra. Libertadas por nós, elas venceram a morte e voltam a viver entre nós. Acontece a mesma coisa com nosso passado. […]”

Esse rio Lethe aparece em poesias como as “Fleurs du mal”, de Baudelaire, em óperas, músicas e livros. Borges, em seu poema “Ao vinho”, diz : “Que outros bebam procurando um triste esquecimento; eu busco em ti as festas do fervor compartilhado.”

Bandas contemporâneas também recorrem a sua alegoria : a Solution 45, na canção Lethean Tears ; a Dark Tranquillity, em Lethe. Sem falar do filme de X-Men, onde três membros da Patrulha X perdem a memória, depois de inspirar os vapores do amargo rio.

Marly N Peres

Quando se fala de memória, se fala de consciência. E nós humanos somos o único animal que tem consciência de sua história. Quando um mito faz das 9 Musas filhas da Memória, está nos dizendo que a consciência e o conhecimento só são possíveis pela memória. Memória de si (objeto da Filosofia, da Medicina) e memória da coletividade (objeto da história, da Antropologia).

Além disso, os gregos nos ensinam que ela tem uma função sagrada, pois permite o acesso ao passado. Isso era fundamental, numa civilização que, durante séculos, foi de transmissão oral, até o aparecimento da escrita.

Saber que só conhece quem re-conhece pode nos tornar mais atentos e conscientes.

Marly N Peres